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Considere-se o Rei

O rei morrera (de ofício, porque de corpo ainda era). Mas ninguém lhe dissera. De manhã, erguia-se a manhã com ele. Primeiro a manhã, depois ele. Era preciso pequeno-almoço no momento da fome. Não antes, nunca depois. Era proibido. As flores da manhã tinham distinção das da noite. A estética das horas havia sido normalizada. Havia quem fosse buscar, depois de adormecido o rei morto, as flores da noite, e havia quem fosse deixar, antes de acordado, as flores da manhã. A escala era repetida na preparação do deitar do rei morto. Todos a discutiam, até esclarecida. Não havia dúvidas sobre as regras do rei, ainda que morto. Faziam-se claras na altura a que ia a voz do elevado se falha se desse. Um dia houve que lhe esqueceram o nome, de tanto tempo que se fazia em que já não ia nas cartas, nem nas enviadas nem nas chegadas. No tempo que foi para estalar os dedos, para acordar lembradura, o da frente apoiou-se na verdade, ‘O rei morto!’, ‘Isso!, pois ao rei morto é preciso recordar que hoje é dia de banho!’. Preparou-se o banho ao rei morto, que se despiu, na nudeza em que engordara. Não obstava o rei morto a que lhe assistissem ao que cru fosse. Pois era como se não estivessem. O rei morto estava sozinho em salas transbordadas, pois ninguém tinha gabarito para com ele partilhar presença. 

Todos ouviam o que o rei morto considerasse dizer. Era um presente. E todos os dias o rei morto gostava de oferecer as suas considerações, o que fazia sem apoio datilografado. Era um presente que não podia devolver-se. Por muito que se quisesse. Certa tarde, ouvidas três horas de considerações doadas, interrompidas apenas na precisão de prestar indicações à corte morta, um dos privilegiados ofendeu o rei morto, desbragando a boca. O rei morto não podia ignorar a falta de educação, pois a magnanimidade podia ficar questionada. O rei morto era grande demais por dentro. E isso era preciso ver de fora. Distribuiu ao juiz a tarefa de castigar o enfado do privilegiado. ‘Anda cá!’, gritou o juiz. O outro seguiu. ‘Estás sentenciado a dez dias sem pão!’, e deu-lhe, por baixo das saias, a senha para se servir na padaria, pois na monarquia morta a penitência era só a brincar. Só o rei morto achava-se a sério. O rei morto roncou e o juiz disse mais, ‘e a beijar os pés da grandeza real!’. O ofensor encolheu as maçãs do rosto, mas o juiz aprofundou baixinho, ‘Hoje foi dia de banho…’. O que deu fôlego ao enfadado que, a despachar tema, foi até às escadinhas que separavam como era preciso o rei morto dos privilegiados. O rei morto puxou, então, as calças de seda para cima, tirou o pé direito do sapato e estendeu-o para o ofensor. Aproveitou para articular os dedos. O privilegiado observou o bom aspeto dos pés e tratou do beijo. O rei morto concluiu magnânimo a ofensa sanada e seguiu o raciocínio interrompido. Dado que era circular, não houve dificuldade. 

Num dos dias que vieram depois, o proprietário da república bateu à porta da casa do rei morto. Foi atendido por cortesia de vizinhança. Vinham dizer que era preciso que o rei morto fosse esclarecido da sua condição, pois as pessoas que lhe faziam a mentira faltavam aos departamentos do estado. O governador da casa do rei morto assustou-se, pois as regras eram claras. E hoje não fora dia de banho. Os assessores da república trataram de dizer que estava assegurada elucidação do procedimento, havia texto pronto. O governador chamou o juiz para conduzir o assunto. O juiz, clarificado, pediu que viesse o rei morto, para ser notificado que morrera. Chegado, o proprietário da república leu sem prelúdio o texto dos assessores da república. Foi bem-sucedido. Não se engasgara. O rei morto esbugalhou os olhos. A mortandade era clara. O texto fora bem escrito. Felizmente para a transição, o rei morto tinha pressa. O governador explicou-lhe, contudo, que tinha tempo para o lanche, que a regra só mandava ser daí a bocado. O rei morto experimentou umas palavras que não saíram e disse ao governador que os senhores tinham de ser bem atendidos. E que era preciso coragem para morrer. Declarou, por isso, aos da república, ‘Deixem estar, morrerei, pois, por decreto!’. E depois sorriu, porque lembrou-se que havia passado a peticionário. E não sabia se a república lavava os pés. O proprietário desta gostou muito que o caso tivesse sido resolvido sem necessidade de revolução. 

Antes de saírem os outros para a república, o rei morto quis saber se mantinha privilégios. Quando o proprietário da república pediu esclarecimentos sobre quais pretendia, o rei morto só disse que queria continuar a considerar. O da república disse que estava bem, mas que já não havia privilegiados para ouvir a sapiência que elaborasse, porque tinham de ir para os empregos da república, e que não podiam manter as escadas até de onde considerava, pois na falta de monarquia como local de trabalho já não havia como fazer contrato a quem o ajudasse a subir e a descer. O rei respondeu, então, na modéstia dos excelsos, que não fazia mal, que ia considerar para o chão e que só o ouvisse quem tivesse tempo livre depois de despachada a república. Todos concordaram. Uns seguiram para a república, outros ficaram a arrumar a monarquia. O rei foi tomar banho. Não quis ninguém no auxílio. Adiantou ao governador que agora precisava de considerar sozinho. No corredor da monarquia que ainda agora era, pousou a cova da mão sobre a cabeça de um adolescente que acabara de perder lugar de sucessão na corte dos privilegiados e disse, ‘Vai à república comprar-me papel’.

Publicado pela primeira vez em Anim'Arte: Revista de Animação Sociocultural. Viseu, GICAV-Grupo de Intervenção e Criatividade Artística de Viseu. Julho, Agosto, Setembro:109 (2018), p. 24-25.

Integrado no livro A Revolução dos Homens Sentados.

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