top of page

A escritora que é pedra encontra uma menina que é segundo

Gustav Mahler, Sinfonia n.º 9

A escritora disse, ‘Nada mais escrevo que não cante, nada mais vejo que não morra’. Ela saiu então do quarto, pois não esperou que morresse o que então via. Sossegou quem por ela passou, ‘Nada acontece que não seja invisível, não incomodará o que não exista’. E dela caía a pena. E da pena caía o canto. Ela chegou à rua e sentou-se, pois à vida que passava em frente ela só assistia. E ela se comovia.

Uma menina a viu restando no chão, contando para trás a vida que escorria ao dia. A menina disse, ‘Tudo se move enquanto tu te demoras’. A escritora olhou para ela, que era vida, e disse, ‘Quando o movimento é inútil, a gente só pode assistir’. A menina tentou encontrar a palavra necessária, mas só encontrou uma que não solucionava nada, ‘Tem sempre movimento a espera’. A escritora viu a menina como se acabasse de chegar e disse, ‘Movo meus medos, meus modos, meu jeito, mas a vida sempre cessa, sempre vai, sempre escorre. Ela te escorrerá, menina’. A menina entendeu que a escritora era pedra e saiu.

A escritora continuou imobilizada, sentada no chão que com ela parava também. Mas a escritora notou num instante a mudança que nela e no chão parado se fazia. Ela soube que tinha ficado a falta. E a falta lhe movia os medos, os modos, o jeito. Ela quis a menina que lhe tinha fala, ainda que um dia nada. E ela se levantou do chão que para trás continuou parado e seguiu, decidindo cada passo de modo a fazer caminho.

Conforme andava, tudo o que era ela além da falta se movia e lhe pedia palavra. Ela então soube que era estátua. Nos seus contornos fixos, ela era transformada. 

A escritora parou no meio do caminho, que também pode ser destino, e na folha de papel de que desistira esboçou o movimento que lhe ia. Ela escreveu, ‘Nada’. E a palavra ela tentou, no destino que fora caminho, ‘Nada existe que não seja segundo, nada acontece que não se faça pó’. E a escritora entendeu o que só fora semente. Ao dia que se queda sobra outro que se recomeça. E ela os dias quis, recomeçados como palavras cumpridas e palavras de novo tentadas.

A menina a encontrou, em estátua, contando dias seguintes na poesia que longa lhe escorria da pena. E pôs pergunta sobre a esperança, ‘Se segundo sou e segundo serei, quererás que tua seja no tempo que é meio?’. A escritora entregou um gesto onde ia toda, deixou cair a pena que dentro dela se firmou, estilhaçou os contornos fixos que a agrilhoavam dentro e segurou a menina. Apertou os braços, onde guardou o movimento. Sentou-se no chão, onde foi colo. 

A menina então na escritora se deixou inteira no pedaço de vida que era apenas. O tempo era todo no segundo que as tinha juntas. E a escritora começou cantando, com palavras pela primeira vez encontradas, a folha que era o segundo infindo que a vida se desfiando nos braços continha. Se um dia a vida onde ela habitava com seu afeto, seus medos, seus modos, seu jeito, desnascesse, ela em beijos permanentes lhe teria dito, ‘Minha poesia, minha morada, tua vida foi contada’.

 

 

Lisboa, 30 de dezembro de 2022

Publicado na coletânea O Concerto das Letras, Editora Tipografia Musical, novembro de 2023.

bottom of page