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Rute Simões Ribeiro

O Homem Que Sonhou

edições humanistas | Da Declinação dos Direitos

O Homem Que Sonhou é um texto que convida o leitor a encenar no seu imaginário o julgamento – noturno, onírico – de um homem pela sua atividade de ideação dissonante da “Instituição”, que a todos garante a suficiência, na condição da contenção imaginativa. Apresentam-se outras personagens, entre elas, “o homem que segue ao lado”. O caso julgado encerrar-se-ia com uma declaração de inocência, com a contrição da consciência. Contudo, o homem que sonhou não se destitui da ideia sonhada e decide declarar-se culpado do seu crime de consciência. O seu advogado de defesa procurará, num primeiro momento, persuadi-lo a revogar consciência e o advogado da instituição solicitar-lhe-á que silencie ofensas ideológicas, pois a Instituição “conhece a força da escolha em não advogar por uma ideia sonhada” e sempre lhe agradecerá “o sacrifício da palavra oculta”. O juiz, que pede a estabilidade ideológica, face à contaminação “de ideias sonhadas e por sonhar”, virá, porém, a tomar uma decisão inesperada, inevitável no curso do confronto das ideias com elas mesmas. Convocando um elogio à ignorância que se conhece e sujeitando os pressupostos em juízo à prova da reflexão e ao diálogo relacional (do indivíduo com os outros e consigo próprio), num exercício que recordará a dialética socrática, a interrogação abrirá os dialogantes à verdade completa e à justiça como ela é. Este texto quase-dramatúrgico, se é estruturado como uma peça de teatro, apresenta, porém, marcadores na palavra escrita, para além de usar uma oratória inextricavelmente literária, estética e filosófica. Se as peças de teatro se escrevem para serem ditas, esta será, antes, uma exercitação quase-teatral, a encenar intimamente, e que existe, em primeiro lugar, para ser, na interioridade, lida. 

«— Estamos todos, hoje, aqui, para assistir a um julgamento. Serei eu o julgado, como pode, desde já, antecipar-se. (Pausa. Refletindo:) Tudo pode acontecer, quando nos esperam as palavras. Quando aguardamos o discurso e o que move ele. (Pausa.) A Instituição abriu contra mim um processo. Não me resignarei ao silêncio e prestarei o meu franco depoimento ao Meritíssimo Juiz. Não o adiantarei agora. Isto para não me repetir e não aborrecer. De todo o modo, considero relevante que os senhores conheçam a essência simples desse depoimento, antes de ouvirem o que será dito. Eu sou... culpado. (Sorri contida e humildemente.)Vejam bem como sou impertinente. Nem nos conhecemos e aqui estou, (Repousando a mão sobre o peito:) esperando que acreditem em mim. (Reverencioso, algo angustiado:) Pois que primeira impressão poderão ter os senhores, presenciando o julgamento de um homem? Como poderão confiar em mim o suficiente para crerem na minha declaração de culpa, de imputabilidade do facto de que sou acusado? Pois vos solicito a compreensão que tem a boa vontade. (Pensando, ao mesmo tempo que comprime e esfrega a testa com a ponta dos dedos:) Não, não a compreensão, pois também ela se debruça sobre a inocência. Peço, com a responsabilidade de uma moção de confiança, a vossa interrogação. (Solicitando:) Pois, por favor, questionem-se os senhores. Quem serão, no fim de contas, os julgados? Quem são, afinal, os julgadores? Quem resta de espetadores? (Pausa, deixando cair os braços. Aponta com a mão estendida:) Avanço, pois ali me esperam. (Humilde:) Se me dão licença. (Retira-se e coloca-se de novo ao centro, em cima do estrado.)»

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