INÉDITOS
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Permanecem aqui alguns textos não publicados, em gaveta aberta.
Permanecem aqui alguns textos não publicados, em gaveta aberta.
O menino que faz metades não sabe da estratégia
Quem ordena disse “É preciso fazer assim!” e alguém fez desse modo exato. Sem desvio. Não foi comprometido o ordenado. Não se deu oposição. Obedece-se com muita convicção à estratégia de quem a escreveu com muito afinco. Foi feita sobre uma secretária muito direita, num papel muito limpo, com uma caneta muito bonita, numa sala onde ninguém vai incomodar, por uma pessoa muito concentrada. Porque é preciso silêncio no momento de fazer a estratégia. Para que saia sem distração. É importante que resulte a direito, escrita sem dúvida.
Ninguém sabe quem inventou a necessidade de estratégia. Há fé na boa intenção de quem dela se lembrou pela primeira vez. Depois disso, é que o assunto se complicou. Alguém mandou mostrar desempenho e ficou tudo aflito. Era preciso corresponder à expectativa das coisas complexas. Por esse motivo, a simplicidade foi proibida. Quanto mais complicada a estratégia se apresentasse, mais competente se supunha. Nesse momento, perdeu-se alguma coisa e nunca mais ninguém a viu.
O senhor que desenhou a estratégia com muito cuidado, tanto nas letras como nas ordens, saiu mesmo agora do seu gabinete. Entrega-a estoico, limpando o suor da testa. Foi labor de grande desafio, pois não houve ideias que não as dele. Ninguém a discute porque foi muito estudada. A estratégia será agora copiada tantas vezes quantos aqueles a quem se delegará repetição. É preciso multiplicar a estratégia que tenha sido escrita por alguém muito concentrado e sem distração. Ele foi muito valente na decisão, não pestanejou uma única vez. As frases estão bem feitas e o mundo terá de ficar melhor. Não há alternativa. Está escrito no papel e tem no título “Estratégia”. É obrigatório que o mundo mude neste instante.
Há um menino que não sabe da estratégia. Ele está a desobedecer-lhe, ainda que não seja coisa de insolência. Ele continua nos dias e os dias nele. O rapaz não está a fazer a estratégia do senhor concentrado. Não terá sido feita cópia para ele. Ele acordou na casa de pau-a-pique, ele saiu para a rua, ele molhou a cara com água infecta, ele subiu na bicicleta, ele chegou na escola e sentou-se no chão, ele pegou no lápis e rabiscou no livro rasgado, ele olhou para o quadro e não entendeu as letras, ele olhou para dentro e lembrou-se da fome, ele foi para a fila e pegou o pão, ele comeu uma metade e reservou a outra metade para os irmãos. O menino afinal tem estratégia, mas não é das planeadas. Não usou papel, não se serviu de uma caneta, não se sentou a uma secretária, não entrou numa sala vazia, nem a fez concentrado. Ele só a viu brotar das mãos vazias e dos pés sujos. Ele fez a estratégia da metade, a estratégia do dia em que se come e do dia em que se dorme, a estratégia do dia em que se vive e do dia em que se morre. No dia em que se morre, a estratégia não aconteceu. A estratégia esqueceu-se que era dia de viver.
Quando ninguém se lembra de fazer uma cópia para os meninos, temos um problema importante. E ninguém sabe agora como fazer. Porque não está escrito no papel o procedimento para quando isso acontece. Há ideias simples a aparecer, mas ninguém tem confiança nelas. E a pessoa que fez as frases bem feitas para a composição da estratégia já está ocupada a fazer estratégias de grande qualidade para outras partes do mundo. Não pode ser interrompida. Há registo de urgência e, por isso, os próximos meses serão dedicados a introspeção profunda e a uma grande concentração. É possível que haja necessidade de pensamento complexo e de palavras nunca escritas. Esperam-se grandes resultados, pois ouviu-se dizer que as frases serão compridas. A não ser que alguém se esqueça de fazer as cópias para os meninos que estão dentro do mundo onde se quer fazer estratégia. O problema é que as crianças não ficam sossegadas para caberem dentro dos papéis intitulados “Estratégia”.
Há pessoas que não são tão importantes e que não são chamadas a resolver complicações, que também fazem estratégias para os meninos. Estas pessoas escancaram-se à oportunidade da distração. Vão para a rua e não pensam a direito. Andam às curvas conforme o caminho da rua e as pessoas no meio dele. Não vão escrever para dentro de salas só com silêncio a ocupá-lo, nem fazem questão de usar secretárias muito bonitas. Não há registo da qualidade da caneta utilizada ou do papel escolhido. Diz-se que elaboram sobre ideias simples e que não desenvolvem diferenças. Há grande dúvida sobre a competência de estratégias assim distraídas, sem dedicação à complexidade e feitas de rua. Com efeito, que podem as vielas da rua lá em baixo quando se trata de estratégia, que é própria dos gabinetes dos edifícios lá no alto? Mas, enfim, por hábito, as pessoas que escrevem estratégias na altura e a direito não se transtornam muito com as pessoas que escrevem estratégias na rua e às curvas. Confiam na estratégia das cópias certas.
Uns não empatam os outros. As pessoas menos importantes procuram tratar das metades enquanto não chegam as coisas completas. As pessoas mais importantes esforçam-se por resolver as coisas completas e não se deixam distrair com a necessidade de metades. É pena, mas estas não estão a acontecer no tempo certo. É preciso que aguardem que a pessoa concentrada termine as frases. Terão, pois, de ficar à porta, que tanto pode ser a ruína, o barco e a cinza, ou a terra, a água e o tempo, em que se tornem.
A estratégia acontece muito aos outros. Os meninos que acordaram hoje, que saíram para a rua e estão na fila para as metades, se lhes perguntarem, ficarão contentes por saberem de outros meninos que estão na fila para as coisas completas. Foi uma estratégia bem-sucedida. Terá sido repetida sem defeito. O cálculo do número de cópias foi exemplar. Estima-se, por isso, agora, um grande investimento em salas grandes, com muito silêncio e distintas secretárias, fornecidas abundantemente de papel e de canetas de lindo aparo, e uma pessoa concentrada de cada vez.
Lisboa, maio 2021, Rute Simões Ribeiro
Publicado na Revista de Partes, novembro de 2021.