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Entrevista a Revista Conexão Literatura

Conexão Literatura: Poderia contar para os nossos leitores como foi o seu início no meio literário

 

Rute Simões Ribeiro: Publiquei o meu primeiro livro em 2017. Tinha sido finalista do Prémio LeYa dois anos antes e, ao fim desse tempo, constatando as dificuldades do meio editorial, resolvi experimentar a publicação independente, algo que nunca pensara fazer. Foi, contudo, uma decisão e um marco importante. Tudo, na verdade, começou aí. Quase de imediato, assim que o livro chegou às pessoas, recebi um grande carinho dos leitores e uma reação muito positiva. Pude também, nesse momento, compreender a sua grande generosidade no acolhimento de novos autores, generosidade que mantêm até hoje e pela qual sinto uma enorme gratidão. A eles, aos meus primeiros-leitores, e ao seu afeto, também devo parte do impulso para publicar os livros que se seguiram. Mas esta é a história recente, a do parto, dos livros postos, despidos na rua. Se recuar um pouco mais, poderei contar a história de uma menina de seis anos que, quando terminou o seu conto sobre um pequeno urso que fora brincar com os amigos, pensou que, quando um dia fosse escritora, já tinha o que dizer se lhe perguntassem, no futuro, com que idade tinha começado a escrever. O futuro chegou para essa menina.

Conexão Literatura: Você é autora dos livros Ensaio sobre o Dever (Ou a Manifestação da Vontade) 2017; A Alegria de Ser Miserável (2018); O Escritor e o Prisioneiro (2018); A Breve História da Menina Eterna (2019) e A Revolução dos Homens Sentados (2020). Poderia comentar? 

 

Rute Simões Ribeiro: O Ensaio sobre o Dever (Ou a Manifestação da Vontade) teve inicialmente outro nome, Os Cegos e os Surdos. Foi um exercício sobre o que aconteceria se tivéssemos de escolher um só sentido. Na história, o governo, receando o impacto na organização da sociedade da escolha livre, obriga os cidadãos eleitores a escolherem o sentido mais conveniente à nação, chamando-os a um dever coletivo. É curioso como estamos também, nos dias de hoje, numa situação em que a liberdade individual se condiciona ao bem coletivo. As personagens deste livro levam-nos a compreender de que modo a autodeterminação das pessoas pode também coincidir com a solidariedade perante o outro. Mas eu diria que as personagens principais neste livro são, perante o todo, secundárias, breves pinceladas narrativas, como aqueles indivíduos que, num filme, vemos passar de uma sala para outra, fazendo a continuação dos planos, conduzindo o nosso olhar, o ponto de vista. Os verdadeiros protagonistas na história são os invisíveis que se predispõem, sem mais, a ajudar o outro e, em conjunto, formam uma sociedade coesa, justa, inclusa. A Alegria de Ser Miserável foi um livro já muito diferente, não se centra em coletividades, mas na vivência de um homem e das suas circunstâncias ao longo de trinta anos. Quando iniciei este livro, estava no Alentejo, uma região linda do interior de Portugal, onde tudo é lento e tépido. Isso marcou à nascença a personagem, que também assim se fez. Tinha lido uma notícia espantosa sobre um homem que tinha sofrido uma embolia e que, por isso, nunca mais sentiria tristeza, o que é profundamente literário. Foi um livro escrito com franqueza, nada a demonstrar, não queria contar nenhuma história em particular, apenas passear-me por este homem, o Zé, sem nenhum compromisso a não ser a estética da narrativa e da linguagem. Acaba por ter uma mensagem, mas essa surgiu naturalmente e nem por mim foi antecipada. O Escritor e o Prisioneiro também resultou de uma história real, a de uma mulher que foi presa por razões políticas e que, uma vez libertada, foi perguntar a um médico psiquiatra se não teria enlouquecido. Mais uma vez a realidade informando a literatura. Depois, o livro tomou a sua forma e narrativa próprias, como todos eles aliás, tantas vezes se distanciando do caminho que eu havia previsto. Foi um exercício narrativo diferente também porque, sem querer, eu o encenava mentalmente enquanto o escrevia. E também porque me deparei com um narrador que eu queria ausente, o que me levou a usar alguns recursos, semelhantes a didascálias, próprias da dramaturgia. É um livro que brinca com a identidade, com o próprio exercício da escrita e com a lucidez. Este tema da lucidez atrai-me muitíssimo. A Breve História da Menina Eterna é talvez o livro mais pessoal, sem ser de forma nenhuma autobiográfico. Foi escrito sob uma forte emoção, porque trata do fim. Com a Maternidade, nós damos início ao que, um dia, terá fim. E não é isso angustiante? O que uma mãe faz ao compreender isso? As primeiras críticas foram muito emotivas também, o que me levou a perceber que é possível convocar emoções fortes e pessoais nos leitores, sem comprometer a literatura. Sei, contudo, que as reações a este livro serão diversas. Acredito que será ou amado, ou detestado. A Revolução dos Homens Sentados reúne textos de narrativa breve, muito diversos entre si, sobre a temática da revolução. Este apelo que o tema tem sobre mim vem da Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal, que me fascina desde pequena. Foi uma revolução muito bonita, poética, que podia ter saído de um livro de histórias, vivida e antecipada com um forte sentido do que está certo e errado. A senha que sinalizou às tropas o momento de se prepararem foi uma canção e a segunda senha que confirmou que a revolução se faria, indicando a saída dos quartéis em simultâneo, foi uma outra canção sobre fraternidade, passada clandestinamente na rádio nacional. Foi uma revolução feita com coragem, sem violência, e que terminou numa festa espontânea, nas ruas, com flores nos cabos das espingardas, celebrando a liberdade. Quem poderia imaginar, ou escrever, uma coisa mais bonita? Que todas as revoluções sejam assim, serenas, dignas e nobres, nada mais querendo a não ser o bem do outro. O outro como nós.

Conexão Literatura: Além de livros físicos, você também possui e-books. Fale mais a respeito.

 

Rute Simões Ribeiro: Os e-books são uma forma de fazer chegar os livros a mais pessoas e a leitores de todo o mundo. Por vezes, há livros que precisam do virar de página, dos dedos sobre as letras impressas, da rugosidade do papel, para entregarem toda a experiência de leitura, como eu sinto ser o caso do livro A Breve História da Menina Eterna. Por isso, durante um ano, este livro só esteve disponível em formato impresso. Mas compreendi que um livro não lido é um livro moribundo, que não faz o seu trabalho de se duplicar nas pessoas. Por esse motivo foi recentemente disponibilizado também em formato e-book.

 

Conexão Literatura: Como foram as suas pesquisas e quanto tempo levou para concluir seus livros? 

 

Rute Simões Ribeiro: Não tenho muitos compromissos com factos, pois, com exceção de alguns textos, ficciono. Considero, porém, que é na ficção que o autor emancipa e exalta a verdade, porque não a particulariza e assim a torna universal. Quando escrevo, somente procuro dar respostas às contínuas perguntas que me devolvem o contexto, os acontecimentos e as personagens que vão tendo construção, procurando acima de tudo a congruência estética da narrativa. Mas julgo que mesmo o autor que ficciona tem alguma responsabilidade para com a verdade, com a ética. Que aceita ou ignora. Apesar de escrever ficção, tenho uma coleção mental de reais experiências, encontros, observações casuais e muitas vezes irrelevantes que, por vezes, se tornam a premissa da ficção e é depois a literatura que lhes atribui relevância. Outras vezes são simples adereços. De qualquer modo, servem a literatura e não o inverso. E eventualmente verdades globais. A Alegria de Ser Miserável é um livro que tem muitos destes factos reais banais e inconsequentes. Muitas das personagens que aparecem brevemente no livro existiram realmente, como a senhora do vestido dos peixinhos, ou o paginador. Aliás, em todos os livros há algo de verdadeiro. Mas toda essa verdade particular serviu a literatura. 

O tempo que levo a escrever os meus livros é muito variável e alguns são frequentemente interrompidos por outras histórias que sinto necessidade de escrever. Uns levaram vários anos a serem escritos, como A Alegria de Ser Miserável, escrito entre 2013 e 2017, outros apenas semanas, como A Breve História da Menina Eterna. Há histórias que foram escritas num só dia, como a maioria dos textos incluídos n’ A Revolução dos Homens Sentados. O Ensaio sobre o Dever (Ou a Manifestação da Vontade) foi escrito em dois anos. Comecei-o num impulso numa madrugada em 2011, depois de muitos anos sem escrever. A menina de seis anos tinha ressurgido e já não foi embora. Olhando para trás, a imaturidade literária era muitíssima, cometi alguns erros, que hoje em dia evito, mas também isso serviu para crescer e saber que tipo de escritora sou e quero ser. O livro A Breve História da Menina Eterna foi escrito na primavera de 2016 e foi com ele que me tornei escritora, que adquiri a disciplina da escrita. Aceitei a pulsão e integrei-a numa rotina que nunca mais deixei que cessasse. Para ele muitas vezes fugi enquanto terminava o meu Doutoramento. Apesar de ter sido escrito em apenas cinco semanas, num acesso de urgência, eu levei, porém, muito tempo até que considerasse este livro pronto para publicação. Tive de limpar, excluir e transformar aquilo que estava em excesso e não era literatura. A profunda emoção pessoal que me acompanhou enquanto o escrevi tinha-se sobreposto à estética e àquela verdade universal, essa sim que, para mim, enquanto escritora, importa e não consigo dispensar, mesmo que o exercício de escrita leve mais tempo. Já A Alegria de Ser Miserável ficou praticamente incólume desde que saiu da pena. Quase o senti desfiar naturalmente enquanto o deitava na folha.

 

Conexão Literatura: Poderia destacar um trecho que você acha especial em cada um dos seus livros?  

 

Rute Simões Ribeiro: Para essa resposta, só com consulta. 

N’O Escritor e o Prisioneiro, deixo este: “De quem é um livro se não do seu próprio tema. O escritor é autor, o assunto proprietário. O assunto o homem. (...) Agora, existe, funciona, move-se, tem intenções. Acontece.” 

N’A Breve História da Menina Eterna: “e [a vida] acrescentou, virando-lhe [à morte] costas, ‘Tu és evento, eu sou existência’”. 

N’A Alegria de Ser Miserável: “E, de braços emparelhados, riram-se os dois muito, a que era capaz de ser infeliz e o que não era. E de um riso por projeto nasceu um riso por intento. Os dois irmãos estavam rindo no mesmo tempo. E assim saíram juntos para a rua da luz, no tempo das escolhas.” 

N’O Ensaio sobre o Dever (Ou a Manifestação da Vontade): “no momento em que o além tinha decidido ceifar, com pré-aviso (...), vasculhou afinal o mais íntimo da nossa voluntas, perscrutou-a e aquiesceu aos seus desejos, deu-lhe o que ela queria, anuiu sem regatear (...), que o governo não tem jurisdição no além.” 

Sobre A Revolução dos Homens Sentados, deixo-vos o pequeno texto que dá título ao livro: “Um estava sentado. Outro passou e entregou-lhe a pergunta, O que espera? Inclinou-se para acomodar a resposta, caso viesse baixinho. A revolução, foi o que o sentado lhe disse. O que estava inclinado aguardou reflexão e depois disse, E como se faz a revolução de homens sentados? O sentado disse então para o inclinado, No vagar está o segredo. O homem inclinado baixou-se mais ainda para ouvir o que fosse, Então e qual é?, perguntou. O homem sentado respondeu, Ela tem de se fazer na gente, observo-a daqui para ver se vem inteira, sem alternativa, ainda não está pronta. Não está pronta, repetiu o homem inclinado. Ergueu-se e declarou, Sendo assim, avise se faz favor quando chegar. O homem sentado elevou o queixo para o homem levantado e disse, Também vem à revolução que houver na gente? O homem levantado disse, Pois sim, se somos feitos das mesmas necessidades, das mesmas faltas, confio que, se a revolução se fizer a si, lhe hei de ser próximo. O homem sentado sorriu e o homem levantado piscou o olho. Estavam combinados. Quando a revolução precisou de se fazer nos homens, tanto os sentados como os levantados saíram à rua.”

 

Conexão Literatura: Como o leitor interessado deverá proceder para adquirir os seus livros e saber um pouco mais sobre você e o seu trabalho literário? 

 

Rute Simões Ribeiro: Podem acompanhar o meu trabalho na minha gaveta virtual em rutesimoesribeiro.blogspot.com, no instagram.com/rutesimoesribeiro, no goodreads.com/rutesimoesribeiro ou no facebook.com/rutesimoesribeirobooks. Os livros podem ser adquiridos facilmente na Amazon. Estão também à venda em várias livrarias independentes, que podem ir consultando em rutesimoesribeiro.blogspot.com. 

 

Conexão Literatura: Existem novos projetos em pauta? 

 

Rute Simões Ribeiro: Serão publicados em breve uma peça de teatro e uma coletânea de textos breves que, não sendo infantis, são dedicados às crianças. Escrevo neste momento um argumento e um novo romance, o primeiro distópico e de novo sobre uma ideia impossível, o segundo novamente um exercício ficcionado que tem, contudo, como ponto de partida algo que realmente aconteceu. Para além disso, vou escrevendo textos breves sobre ideias que chegam e sinto necessidade de resolver no momento. São narrativas breves que se vão acumulando e que, um dia, serão também reunidas em livro, caso sirvam alguma verdade comum.

 

Perguntas rápidas:

 

Um livro: (vou fazer batota) o lúcido As Intermitências da Morte, de José Saramago, e o necessário Capitães da Areia, de Jorge Amado

Um (a) autor (a): José Saramago e tenho de dizer Agustina Bessa-Luís

Um ator ou atriz: Nuno Lopes

Um filme: O Último Castelo, com Robert Redford

Um dia especial: 25 de Abril (de 1974)

 

Conexão Literatura: Deseja encerrar com mais algum comentário? 

 

Rute Simões Ribeiro: Deixo um abraço forte a todos os Brasileiros pelo período tão difícil que atravessamos todos. E agradeço a vossa amabilidade e a oportunidade de falar do meu trabalho, num momento em que a arte não salva, mas certamente não deixará que fique esquecido.

Entrevista concedida à Revista Conexão Literatura, n.º 60, publicada em junho de 2020.

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